domingo, 29 de abril de 2018

Populisprudência

Assim como a hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude, a aparência jurídica é o tributo que a populisprudência paga à jurisprudência.

Entramos na era da populisprudência, a versão judicial do populismo. A populisprudência sintoniza sua antena na opinião pública e no humor coletivo e "transcende" a lei quando esta não estiver afinada com uma causa maior. Convoca apoiadores e lhes agradece publicamente pela mobilização em defesa da "causa". Adere à cultura de celebridade, aceita prêmios em cerimônias chiques, tanto faz quem as organize ou quem sejam seus companheiros de palco. Frequenta gabinetes políticos e a imprensa, onde opina sobre a conjuntura política, alerta sobre decisões que poderá tomar em casos futuros e ataca juízes não aliados à "missão". A populisprudência é televisionada e tuitada, não está só nos autos.

O desafio populista que se abate sobre regimes democráticos ao redor do mundo ganhou no Brasil uma cor peculiar, pois recebe contribuição significativa dos aplicadores da lei. O termo "populismo" é rodeado de ambiguidades e povoa o jargão da análise política. Entendido como ameaça à democracia, o fenômeno tem dois traços elementares: é antipluralista, pois ignora a diversidade de opiniões e impõe uma visão monolítica de povo; e antiinstitucional, pois instiga as massas contra todas as regras e todos os procedimentos que impeçam a prevalência da "vontade do povo", uma entidade idealizada, livre de constrangimentos ou mediações.

Todo líder populista seleciona um povo para chamar de seu, e dele exclui os que não têm sua cor, sua cara e sua visão de mundo. O "povo" é uma espécie de clube privê, cujos sócios passam por teste de admissão. Converter o grupo de sócios numa entidade superior e se auto atribuir o rótulo de "povo" é seu truque retórico, sua violência. A cisão entre cidadãos "genuínos" e dissidentes atiça os afetos, alimenta o antagonismo e corrói o diálogo democrático.

Cortes são imaginadas como antídotos contra o populismo, não como parceiros ou órgãos auxiliares das maiorias. Recebem ferramentas para zelar pela separação de poderes e proteção de direitos. Costumam estar, por essa razão, entre os primeiros alvos do ataque de líderes autoritários. Nunca serão fortes o suficiente para subsistir a uma prolongada escalada populista, mas podem desempenhar papel relevante, como mostram muitos estudos, na neutralização desse fenômeno em estágios preliminares. O sucesso das cortes dependerá da reputação e da imagem de imparcialidade que conseguirem construir ao longo do tempo; da capacidade de ser levadas a sério, portanto.

O Brasil assiste a processo inverso: em vez de moderar o canto populista por meio da aplicação isenta da lei, juízes resolveram surfar a mesma onda na companhia de Ministério Público e de agentes policiais. Apostaram num jogo cujo custo pode ser mais alto que o eventual ganho imediato. O movimento vai da cúpula, sob liderança do STF, à primeira instância. Mistura personalismo, o culto à personalidade do líder — ingrediente típico do populismo clássico —, com um ingrediente impessoal sutil, expresso no carimbo da instituição de justiça.

Sergio Moro, Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso são encarnações mais recentes do elemento personalista. Cartazes de passeatas os tratam como heróis ou inimigos, e seus nomes já entram em pesquisas de popularidade. O elemento impessoal, por sua vez, aparece nas decisões escritas, que mesclam o juridiquês com frases de efeito sobre a calamidade brasileira e o papel messiânico do Judiciário. Há juízes que preferem não aparecer, mas se somam na "missão institucional". No resultado, essas decisões parecem oscilar conforme os ventos da comoção pública, não por divergências plausíveis de interpretação da lei.

Ou seja, a populisprudência vende uma jurisprudência de fachada para ocultar escolhas de ocasião. É um jogo de alto risco, pois, quando o argumento jurídico passa a ser percebido como disfarce de posição política, e não consegue se diferenciar desta, o estado de direito atinge seu precipício.

Por Conrado Hübner Mendes, Doutor em Direito e Professor da USP

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