sexta-feira, 7 de abril de 2017

A Cabana, o filme

É evidente o sucesso da obra literária A Cabana, um best-seller estrondoso que agora desmembrou-se num filme protagonizado por Sam Worthington e pela atriz vencedora do Oscar Octavia Spencer.

Particularmente, o ponto que me chocou no filme é que ele se apega a esquematizações e "força a barra" para criar empatia com o público desde seus minutos iniciais, quando nos é apresentada a dolorosa infância de Mackenzie e sua conturbada relação com o pai. Outro aspecto especialmente irritante do filme está intimamente ligado à fraqueza de seus diálogos. Ao invés de proporcionar ao espectador conversas profundas que iluminem a condição humana e tratem da relação do homem com Deus de forma digna, sem válvulas de escape, o filme prefere se focar nos diálogos fáceis que supostamente só têm como objetivo o de emocionar: "não se esqueça que nos amamos"; "o amor sempre deixa uma marca" e assim por diante. Fica difícil levar a sério um filme que lida com temas tão pesados e questionamentos tão "além de nós" de maneira tão formulaica e muitas vezes apelando para um humor escapista que contribui para maquiar a falta de envergadura da narrativa. Como se não bastasse, muitas vezes a impressão que dá é a de que os personagens estão falando diretamente conosco e não entre eles. A sensação de que se tem que enfiar "autoajuda de quinta categoria" goela abaixo é tão presente que os diálogos em diversos momentos não soam como diálogos, mas sim como sermões, lições de moral que nós, o público, somos obrigados a ouvir.

A Cabana, o livro que embasou o filme, é um alarme para o cristianismo evangélico. A popularidade desse livro entre os evangélicos só pode ser explicada pela falta de conhecimento teológico básico entre nós – uma falha no próprio entendimento do Evangelho de Cristo.

O mundo editorial vê poucos livros alcançarem o status de blockbuster, mas A Cabana, de William Paul Young já ultrapassou esse ponto. O livro, originalmente auto publicado por Young e mais dois amigos, já vendeu mais de 10 milhões de cópias e foi traduzido para mais de trinta línguas. Já é um dos livros mais vendidos dos últimos tempos, e seus leitores são muito entusiasmados, assim como estão ficando os espectadores do filme.

De acordo com Young, o livro foi escrito originalmente para seus filhos. Essencialmente, a história pode ser descrita como uma teodiceia narrativa – uma tentativa de responder às questões sobre o mal e o caráter de Deus por meio de uma história. Nessa história, o personagem principal está enfrentando grande sofrimento após o sequestro e homicídio brutal de sua filha de sete anos, quando recebe um convite que se torna um chamado de Deus para encontrá-lo na mesma cabana onde sua filha foi assassinada.

Na cabana, “Mack” se encontra com a divina Trindade: “Papa”, uma mulher afro-americana; Jesus, um carpinteiro judeu; e “Sarayu”, uma mulher asiática revelada como sendo o Espírito Santo. O livro é na maior parte uma série de diálogos entre Mack, Papa, Jesus e Sarayu. Essas conversas revelam um Deus bem diferente do Deus da Bíblia. “Papa” é alguém que nunca faz algum julgamento e parece muito determinado em afirmar que toda a humanidade já foi redimida.

A teologia de A Cabana não é incidental na história. De fato, em muitos pontos a narrativa parece servir apenas como estrutura para os diálogos. E os diálogos revelam uma teologia que é, no mínimo, inconvencional e indubitavelmente herética sob alguns aspectos.

Enquanto o dispositivo literário de uma “trindade” incomum das pessoas divinas é em si mesmo sub-bíblico e perigoso, as explicações teológicas são piores. “Papa” fala a Mack sobre o momento em que as três pessoas da Trindade “se manifestaram à existência humana como o Filho de Deus”. Em lugar algum da Bíblia se fala sobre o Pai ou o Espírito vindo à existência humana. A Cristologia do livro é semelhantemente confusa. “Papa” diz a Mack que, mesmo Jesus sendo completamente Deus, “ele nunca dependeu de sua natureza divina para fazer alguma coisa. Ele apenas viveu em relacionamento comigo, vivendo da mesma maneira que eu desejo viver em relacionamento com todos os seres humanos”. Quando Jesus curou cegos, “Ele o fez apenas como um ser humano dependente e limitado, confiando em minha vida e meu poder trabalhando nele e através dele. Jesus, como ser humano, não tinha poder algum em si para curar qualquer pessoa”.

Há uma extensa confusão teológica para desbaratar aí, mas é suficiente dizer que a igreja cristã tem lutado por séculos para ter um entendimento fiel da Trindade para evitar exatamente esse tipo de confusão – um entendimento que põe em risco a própria fé cristã.

Jesus diz a Mack que é “a melhor forma para qualquer humano se relacionar com Papa ou Sarayu”. Não o único caminho, mas apenas o melhor caminho.

Em outro capítulo, “Papa” corrige a teologia de Mack ao afirmar “Eu não preciso punir as pessoas pelo pecado. O pecado é a própria punição, te devorando por dentro. Não é meu propósito puni-lo; minha alegria é curá-lo”. Sem dúvida alguma, o prazer de Deus está na expiação alcançada pelo Filho. Entretanto, a Bíblia revela consistentemente que Deus é o santo e correto Juiz, que irá de fato punir pecadores. A ideia de que o pecado é meramente “a própria punição” se encaixa no conceito oriental de karma, não no evangelho cristão.

O relacionamento do Pai com o Filho, revelado em textos como João 17, é rejeitado em favor de uma igualdade absoluta de autoridade entre as pessoas da Trindade. “Papa” explica que “nós não temos nenhum conceito de autoridade final entre nós, apenas unidade”. Em um dos parágrafos mais bizarros do livro, Jesus fala para Mack: “Papa está tão submisso a mim como eu estou a ele, ou Sarayu a mim, ou Papa a ela. Submissão não tem a ver com autoridade e não é obediência; tem a ver com relacionamentos de amor e respeito. Na verdade, somos submissos a você da mesma forma”.

A submissão da trindade a um ser humano – ou a todos os seres humanos – teorizada aqui é uma inovação teológica do tipo mais extremo e perigoso. A essência da idolatria é a auto adoração, e a ideia de que a Trindade é submissa (de qualquer forma) à humanidade é indiscutivelmente idólatra.

Os aspectos mais controversos da mensagem do livro envolvem as questões de universalismo, redenção universal e reconciliação total. Jesus diz a Mack: “Aqueles que me amam vêm de todos os sistemas existentes. São Budistas ou Mórmons, Batistas ou Muçulmanos, Democratas, Republicanos e muitos que não votam ou não fazem parte de qualquer reunião dominical ou instituição religiosa”. Jesus acrescenta, “Eu não tenho nenhum desejo de torná-los cristãos, mas apenas acompanhá-los em sua transformação em filhos e filhas do meu Papa, em meus irmãos e irmãs, meus Amados”.

Mack faz então a pergunta óbvia – todos os caminhos levam a Cristo? Jesus responde “muitos caminhos não levam a lugar algum. O que significa que eu vou caminhar por qualquer caminho para te achar”.

Dado o contexto, é impossível não tirar conclusões essencialmente universalistas ou inclusivistas sobre o pensamento de William Young. “Papa” diz a Mack que ele está reconciliado com todo o mundo. Mack questiona: “Todo o mundo? Você quer dizer aqueles que acreditam em você, certo?”. “Papa” responde “O mundo inteiro, Mack”.

Tudo isso junto leva a algo muito parecido com a doutrina da reconciliação proposta por Karl Barth. E mesmo que Wayne Jacobson, colaborador de William Young, tenha lamentado que a “auto intitulada polícia doutrinária” tenha acusado o livro de ensinar a reconciliação total, ele reconhece que as primeiras versões dos manuscritos eram muito influenciadas pelas convicções “parciais, na época” de Young na reconciliação total – o ensino de que a cruz e a ressurreição de Cristo alcançaram uma reconciliação unilateral de todos os pecadores (e toda a criação) com Deus.

James B. DeYoung, do Western Theological Seminary, especialista em Novo Testamento que conhece William Young há anos, afirma que Young aceita uma forma de “universalismo cristão”. A Cabana, ele afirma, “está fundamentado na reconciliação universal”.

Mesmo quando Wayne Jacobson e outros reclamam daqueles que identificam heresias em A Cabana, o fato é que a igreja Cristã identificou explicitamente esses ensinamentos exatamente como são – heresia. A questão óbvia é: Como é que tantos cristãos evangélicos parecem não apenas serem atraídos para essa história, mas para a teologia apresentada na narrativa – uma teologia que em muitos pontos conflita com as convicções evangélicas?

Observadores evangélicos não estão sozinhos nessa questão. Escrevendo em The Chronicle of Higher Education (A Crônica da Alta Educação N. T.), o professor Timothy Beal da Case Western University argumenta que a popularidade de A Cabana sugere que os evangélicos talvez estejam mudando sua teologia. Ele cita os “modelos metafóricos não bíblicos de Deus” do livro, assim como o “não hierárquico” modelo da Trindade e, mais importante, “a teologia da salvação universal”.

Beal afirma que nada dessa teologia é parte da “teologia evangélica tradicional”, e então explica: “De fato, todas as três estão enraizadas no discurso acadêmico radical e liberal dos anos 70 e 80 – trabalho que influenciou profundamente a teologia da libertação e o feminismo contemporâneo, mas, até agora, teve pouco impacto nas conjecturas teológicas não acadêmicas, especialmente dentro do meio religioso tradicional”.

Ele então pergunta: “O que essas ideias teológicas progressivas estão fazendo dentro desse fenômeno evangélico pop?”. Resposta: “Poucos de nós sabemos, mas elas têm sido presentes nas margens liberais do pensamento evangélico por décadas”. Agora, continua, A Cabana tem introduzido e popularizado esses conceitos liberais mesmo em meio aos evangélicos tradicionais.

Timothy Beal não pode ser considerado apenas um “caçador de heresias” conservador. Ele está empolgado com a forma que essas “ideias teológicas progressivas” estão “se infiltrando na cultura popular por meio de A Cabana”.

De forma similar, escrevendo em Books & Culture (Livros & Cultura N.T.), Katherine Jeffrey conclui que A Cabana “oferece uma teodiceia pós-moderna e pós-bíblica”. Enquanto sua maior preocupação é o lugar do livro “em um cenário literário cristão”, ela não pode evitar o debate dessa mensagem teológica.

Ao avaliar o livro, deve manter-se em mente que A Cabana é uma obra de ficção. Mas é também um argumento teológico, e isso não pode ser negado. Um grande número de romances e obras de literatura notáveis contém aberrações teológicas e até heresias. A questão crucial é se a aberração doutrinária é apenas parte da história, ou é a mensagem da obra propriamente dita. Quando se fala em A Cabana, o fato mais perturbante é que muitos leitores são atraídos pela mensagem teológica do livro, e não enxergam como ela é conflitante com a Bíblia em tantos pontos cruciais.

Tudo isso revela um fracasso desastroso do discernimento evangélico. É difícil não concluir que o discernimento teológico é agora uma arte perdida entre os evangélicos – e essa perda só pode levar à catástrofe teológica.

A resposta não é banir A Cabana ou tirá-lo das mãos dos leitores. Não devemos temer livros – devemos lê-los para respondê-los. Precisamos desesperadamente de uma restauração teológica que só pode vir através da prática do discernimento bíblico. Isso requer de nós identificarmos os perigos doutrinários de A Cabana, para termos certeza. Mas nossa tarefa verdadeira é reaproximar os evangélicos dos ensinos da Bíblia sobre essas questões e cultivar um rearmamento doutrinário dos cristãos.

A Cabana é um alarme para o cristianismo evangélico. É o que dizem afirmações como as de Timothy Beal. A popularidade desse livro entre os evangélicos só pode ser explicada pela falta de conhecimento teológico básico entre nós – uma falha no próprio entendimento do Evangelho de Cristo. A perda trágica da arte do discernimento bíblico deve ser assumida como uma perda desastrosa de conhecimento bíblico. Discernimento não consegue sobreviver sem doutrina.

Com informações Voltemos ao Evangelho
Tradução: iPródigo

Um comentário:

  1. Sou espírita e adorei o livro e o filme também.Esse livro não é apenas para os evangélicos cristãos, é para todos

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